Fonte: Valor Econômico
Apesar de ainda serem poucas, empresas que adotam debates sobre conceitos de democracia e de importância do voto estimulam respeito à diferença de opinião
Num momento em que o choque de duas correntes de opinião diametralmente opostas está dividindo o país ao meio, falar em educação política nas empresas pode parecer o mesmo que jogar gasolina na fogueira. A experiência de empreendedores que apostam na educação política de seus colaboradores, porém, mostra justamente o contrário – que esse é o caminho para a convivência respeitosa dos divergentes dentro da corporação.
“O programa que adotamos desde 2018 procura passar noções de cidadania e abordar direitos e deveres do eleitor, sem tocar em nomes de candidatos ou partidos. É totalmente suprapartidário. O objetivo é dar ferramentas para que cada um vote de forma consciente e entenda como legítima a posição de colegas que pensem diferente”, explica Arnaldo Landi, sócio-fundador da construtora Engeform, que tem seis mil colaboradores espalhados por 35 canteiros de obras em 18 Estados. O fato de a eleição presidencial de 2018 ter caminhado para uma polarização raivosa, incendiada por notícias falsas disseminadas sem controle nas redes sociais, apressou a tomada de decisão da Engeform.
Landi enxerga a educação política como uma contribuição social da empresa, assim como os programas de capacitação profissional e o interesse pelo bem-estar de quem mora no entorno de suas obras. “Minha impressão é que as companhias, em geral, tendem a adotar um programa interno de esclarecimento político à medida que reforcem seus compromissos sociais, corporativos e ambientais, previstos na agenda ESG”, observa.
Apesar de ser adotada por um número ainda restrito de empresas, a educação política, de fato, já está no radar de boa parte delas, como demonstra uma recente pesquisa da consultoria Talenses Group, especializada no recrutamento de executivos. Segundo o estudo, que consultou 111 companhias de médio e grande portes de todas as regiões brasileiras, a grande maioria (95 delas) entende a importância de promover a educação política no ambiente de trabalho, embora apenas 15 passaram da teoria à prática e implantaram o programa. Na avaliação de Luiz Valente, CEO da Talenses Group, as empresas estão adiando a decisão de investir na educação política dos funcionários por causa do atual cenário de polarização política – por mais que os especialistas sustentem que um programa de esclarecimento cívico ajuda a combater as posições radicais, em vez de acirrá-las.
Cícero Hegg, sócio-fundador do laticínio Tirolez, que produz 42 mil toneladas de queijo por ano, garante que a educação política de seus 1,9 mil colaboradores só gerou efeitos positivos até hoje. “Eu tive o insight de implantar esse programa em 2002, quando eram raros os empresários que se importavam com isso. Tanto que a socióloga Maria Tereza Sadek, que eu procurei na época para estruturar essa iniciativa, ficou surpresa com a minha atitude”, revela.
Com a ajuda de Sadek e do cientista político Humberto Dantas, a Tirolez elaborou uma cartilha que indicava a importância de conhecer as propostas dos candidatos antes de votar e promoveu uma série de reuniões abertas aos colaboradores com interesse no assunto. “O programa foi reativado nas eleições de 2018, 2020 e 2022, e nossa ideia é mantê-lo mesmo em anos que não sejam eleitorais. Além de melhorar o clima interno, percebemos que ele aumentou o nível de participação dos funcionários nos negócios da empresa, gerando melhoria nos processos e resultando em economia de tempo e dinheiro”, afirma.
Hegg gosta de citar um episódio que rendeu uma considerável economia ao laticínio a partir de uma sugestão aparentemente banal de dois funcionários do centro de distribuição da companhia. “Eles estavam armazenando engradados de queijos e notaram que poderiam abrir mais espaço se mudassem a configuração das prateleiras. Levaram a ideia ao gerente, que teve a sensibilidade de testar a sugestão e verificou que, de fato, a nova disposição de armazenamento era melhor. Muito melhor, na verdade, porque aumentou em 35% o espaço disponível e adiou por três anos a mudança do nosso CD para uma área maior. Esses funcionários não teriam levado a solução ao gerente se não tivessem sido encorajados pela educação política a tomar iniciativas que pudessem trazer algum benefício a eles ou à empresa”, acredita.
Na Tirolez, a educação política se soma a outros programas que estimulam a participação dos funcionários, como o Despertar, que ajuda a reconhecer capacidades e recursos; o Integração, que junta colaboradores das seis unidades – que ficam em São Paulo, Minas Gerais e Santa Catarina – para uma semana de supermercado e culinária; e o Caixa de Ideias, que recolhe sugestões. “Respeitamos todas as ideias, porque aprendemos que mesmo aquelas que nascem quadradas podem ser aperfeiçoadas e adotadas”, diz Hegg. Segundo ele, a empresa nunca encontrou resistências por parte dos colaboradores na implantação do programa de educação política, “provavelmente porque o comparecimento às reuniões sempre foi voluntário, apesar de ser cada vez maior”.
Na Engeform, que tem um quadro de pessoal maior, mais espalhado e de maior rotatividade – por usar trabalhadores temporários nos canteiros de obras –, a educação política é liderada por um grupo de 26 funcionários denominados “embaixadores da democracia”, que organizam videoconferências ou mesmo palestras presenciais nas várias unidades da empresa. Esses embaixadores foram treinados pelos cientistas políticos Bruno Silva e Humberto Dantas, da ONG Movimento Voto Consciente, que também elaboraram uma cartilha de educação política que os colaboradores podem acessar pelo celular.
A cartilha é um documento de 28 páginas que discorre sobre a responsabilidade das empresas na política, o papel da democracia, a interferência da política na vida de cada um, os direitos e obrigações fundamentais da cidadania, a importância das eleições e do voto, os mitos e verdades do processo eleitoral e os meios para acompanhar o desempenho dos candidatos. Eis um trecho no item sobre a democracia: “Embora a política seja uma das atividades mais antigas da humanidade, ela nem sempre foi realizada da forma como estamos habituados nos dias de hoje: baseada na possibilidade de falarmos o que pensamos, escolhermos nossos representantes políticos mediante o voto, manifestarmos nossos desejos relacionados à esfera pública e convivermos com pensamentos e visões de mundo distintos dos nossos”. Landi sintetiza esse pensamento numa frase mais curta: “Democracia é concordar com a discordância”.
Cartilha, palestras e vídeos organizados por especialistas em ciência política também foram usados pela Natura em sua campanha pelo voto consciente nas últimas eleições. Com nove mil funcionários e 2,3 milhões de vendedores porta a porta que são, em sua grande maioria, mulheres, a empresa de cosméticos planejou a campanha ao notar uma queda no indicador de cidadania do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de suas consultoras Natura e Avon – um possível efeito da falta de engajamento político.
Outro fato que acendeu um alerta na Natura foi o alto percentual de mulheres que costumam optar pelo voto em branco ou nulo – segundo o Ibope, 60% dos eleitores que não escolhem candidato algum são mulheres na faixa dos 35 a 44 anos, justamente o perfil mais representativo das consultoras da marca. Com um histórico de ações políticas e sociais – como a coleta de assinaturas que apoiou recentemente para um projeto de lei em defesa da Amazônia –, a Natura optou dessa vez por um curso pontual de educação política, em vez de um programa permanente. O que não significa descartá-lo no futuro, como tantas outras empresas.